segunda-feira, 8 de abril de 2013

Ônibus, poesia e música


Outro dia, quando saía para o trabalho, peguei um ônibus que liga a zona norte ao centro do Rio. Logo que entrei, notei o som que vinha dos alto-falantes do ônibus. Era o som de uma rádio. Como o som estava um tanto alto e eu ainda um pouco lento por causa do sono, aquilo me perturbou um pouco. Como o antigo carro à álcool, pela manhã eu demoro a pegar. Não gosto de falar e prefiro o silêncio até que desperte por completo. Menos mal, que o som era da rádio JBFM, que eu gosto. No entanto, pensei que aquilo poderia estar incomodando outros passageiros pela altura e por ser uma invasão do direito de não ouvir o que não se quer. Pensei que poderia ser pior. Poderia ser uma dessas rádios mais populares e me incomodar ainda mais. Imediatamente, olhei pelo interior do carro procurando a tal mensagem de proibição de aparelhos sonoros. Batata! Juntamente com outras informações como a da proibição do cigarro, lá estava ela, na frente, bem próximo ao motorista, a etiqueta colada bem ao alto, com o desenho do rádio com a tarja diagonal, indicando a proibição. Pensei de novo: "será que esse motorista gostaria de estar num ônibus como passageiro e ser obrigado a ouvir o que não quisesse?". Peguei os meus fones de ouvido e acabei tendo que ouvir alguma coisa especial, ainda que a intenção inicial fosse a leitura. Fazer o quê?

Enquanto seguia, ouvindo a minha própria seleção musical, lembrei-me de alguns "casos especiais" dentro de ônibus os quais fui testemunha e até participei de um deles como protagonista. É isso mesmo, eu já incomodei ou posso ter incomodado terceiros com a minha música. Apesar desse tipo de evento, geralmente, incomodar os usuários dos transportes públicos, pensei que em algumas situações, podemos nos surpreender com esses ruídos a princípio, indesejáveis.


Um dia, quando voltava pra casa do trabalho, aconteceu um episódio inusitado que até então não tinha presenciado. Eu trabalhava na Urca, um bairro da zona sul do Rio de Janeiro e voltava para Benfica, na zona norte, onde morava. Quando o ônibus entrava no Aterro do Flamengo, uma via expressa, longa e sem pontos de parada, que liga a zona sul ao centro da cidade, era comum a turma do comércio variado aproveitar para vender seus produtos, que em geral ia da inocente balinha a produtos de uso doméstico, como tesouras, retrós de linha e agulhas, aparelhos para descascar legumes etc. Desta vez, um camarada começou a falar e a oferecer poesia. No início, como estava mais para trás do ônibus, senti dificuldade de ouvir e entender o quê exatamente ele oferecia. Começou a recitar algumas poesias de sua autoria, o que para mim, no meio de tanta gente que se apertava, mostrou-se um tanto esquizofrênico. Parecia um lunático a recitar no meio do burburinho alheio do pessoal. Porém, à medida que ia recitando, se aproximava mais para que todo o pessoal de trás pudesse também ouvir. Devagar, as pessoas foram silenciando e eu, vencendo a minha própria resistência, pude perceber, para a minha surpresa, que a poesia era boa. Comecei a dar a devida e possível atenção ao poeta e fiquei maravilhado com a qualidade das poesias. Curioso, levantei-me ao final do aterro e me aproximei dele. Comprei alguns dos folhetos que ele oferecia e bati um bom papo até que ele saltasse na Presidente Vargas. Era uma figura aquele cara e posso dizer que aquela experiência valeu o meu dia. Poesia de qualidade num ônibus apertado, na hora do rush era muito incomum pra deixar passar.


Em outra oportunidade, peguei um ônibus na região da Tijuca, novamente, voltando do trabalho para casa, e me deparei com outra situação que me impressionou de tal forma que até hoje não esqueço o episódio. Eu trabalhava na região do Maracanã e voltava para Benfica, passando pelo morro da Mangueira, da famosa escola de samba de mesmo nome. 

Quando passava perto de uma instituição de ensino, dessas escolas técnicas, entrou um grupo de estudantes, jovens adolescentes, meninos e meninas, naturalmente barulhentos que conversavam, riam e brincavam sempre em voz alta. Logo percebi que o grupo era dali de perto e que aqueles jovens eram amigos, pois falavam de coisas e pessoas que todos conheciam. Sem demora, descobri que eram da Mangueira, pois começaram a batucar e a cantar em voz alta e afinados o samba “Exaltação à Mangueira”: “Mangueira teu cenário é uma beleza que a natureza criou...” Como conhecia e gostava do samba, gostei da surpresa da música. O curioso é que à medida que a música avançava, juntamente com o percurso do ônibus, o morro também se aproximava. O trajeto do ônibus passava por uma rua baixa, lateral à linha férrea (da famosa estação primeira de mangueira), a Rua São Francisco Xavier, e por isso não se podia ver o morro, pelo menos não completamente. Mas, após a subida de uma rua próxima, o ônibus acessava a Avenida Marechal Rondon, que naquele trecho era ainda mais alta e logo na frente ligava-se ao viaduto da Mangueira, que atravessava por sobre a linha do trem, ligando os dois lados do bairro. Quem conhece o local sabe que no trecho inicial do viaduto, vê-se a paisagem do morro na sua totalidade. Pelo menos a face virada para aquele lado.

Pois bem! Quando o ônibus virou, saindo da avenida e entrou no viaduto e a paisagem do morro se fez avistada, os meninos cantavam: “Chegou ô, ô, ô A Mangueira chegou, ô, ô" que é o trecho final e apoteótico do samba. Achei aquela coincidência incrível. 

Essa análise do trajeto e da conclusão da execução da música pelos jovens eu só fiz naquele momento, pois pra mim foi uma surpresa.

Como trabalhei alguns anos nesse mesmo lugar, peguei muitas vezes aquele ônibus e pude encontrar o grupo mais de uma vez, às vezes inteiro, às vezes somente em parte. Numa segunda vez que ele entrou em sua totalidade, tomei conhecimento daquilo que achei ainda mais fantástico. O grupo começou novamente a cantar o samba e então eu marquei exatamente o local do trajeto e fiquei observando e rezando para que nenhum engarrafamento, nem sinal de trânsito pudessem atrapalhar o que eu já imaginava: a apoteose da paisagem do morro e da justa homenagem daqueles jovens rapazes e moças, orgulhosos moradores do morro de Cartola e de Nelson Cavaquinho, entre outros bambas. Quando o ônibus virou e entrou no viaduto, juro que fui discretamente às lágrimas. Era tudo cronometricamente combinado e alegremente executado. Que beleza! Nunca me esquecerei daquele grupo e dessa história.


No final dos anos 80, estava com um grupo de amigos e vínhamos para São Cristóvão, onde morávamos, da Barra da Tijuca. Faríamos uma viagem de acampamento em Itatiaia, uma espécie de retiro espiritual misturado a um sentimento meio hippie de liberdade e fraternidade. 

Pois bem, o organizador do evento realizou um encontro, uma prévia para explicar toda a logística do evento, assim como do deslocamento da viagem. Grande parte dos participantes, quase cem pessoas, foi a sua casa que ficava num condomínio na Barra. Quando acabou o encontro, nosso grupo, de mais ou menos dez pessoas, se dirigiu ao terminal de ônibus “Alvorada”. Lá pegamos um ônibus para a Tijuca e de lá, pegaríamos outro ônibus, pois não havia, e nem há até hoje, condução direta ligando os dois bairros.

Assim que entramos fomos para a parte de trás e começamos a tocar violão e a cantar. À medida que o veículo percorria a Barra em direção à subida do Alto da Boa Vista, ligação ao bairro da Tijuca, o ônibus enchia e as pessoas também se surpreendiam com o que ouviam e viam. Um grupo de jovens, de maioria negra, dois branquelos no meio, dois violões e músicas de Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Boca Livre, entre outros da MPB, ali, de repente, num final de tarde de domingo, não era mesmo algo comum. Para variar, ao mesmo tempo em que eu participava do “show”, também observava o acontecimento com certa estranheza. Afinal, sempre fiz gosto pela discrição. Nunca gostei de chamar a atenção de estranhos. O fato é que eu também me sentia surpreso e adorando aquele concerto inusitado. Música de qualidade, oferecida de graça por um monte de jovens alegres e cheios de paz, num coletivo comum, surpreendia a todos positivamente. Foi demais aquele dia, assim como o retiro também. "A paz na Terra, amor..."


Que bom que as experiências nos espaços públicos nem sempre sejam desagradáveis. A vida nos reserva surpresas altamente belas. Basta termos ouvidos para ouvir, olhos para ver e sensibilidade para sentir.

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16 comentários:

  1. Interessantes comentários,Assis,segui a leitura ansiosa pelos desfechos.E não é que você tem razão? A vida sempre reserva surpresas altamente belas para aqueles que estão dispostos a enxergá-las,sem a sonolência que nos é própria,quando a preguiça existencial nos abraça.
    Muito bom,antes de dormir,depois de um dia intenso ou mesmo vazio,despertar pra fatos tão verdadeiros e tocantes.Você é mesmo um encanto,Adoro o seu canto! beijos da Cida

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    1. Cida,

      sabia que eu adoro ser seu amigo? Fazer parte de parte de sua história é uma das minhas grandes felicidades.

      Obrigado pelas palavras!

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  2. Bom dia mano ! Muito bom o seu texto , li devorando para saber o final kkk , pois é , como diz um pedacinho de uma música que nen sei o nome ." Abra janela do seu coração ". Você fez isso no momento que começou aprestar atenção ao que se passava ao seu redor nesses minutos ou horas kkk para chegar ao trabalho , isso é muito bommmm . Beijo grande no seu coração. ( gosto muito de tudo que você escreve kkk mas acho que isso não é novidade né? ) .

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    1. Rosana,

      claro que sei que não é novidade, mas que é sempre bom ler essa sentença, ah, isso é!

      Volte sempre! Bj.

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  3. Oi, Assis!

    Que maravilha de texto! Tive a sensação de que foi um fôlego só a escrita e assim foi a minha leitura... Senti tanta energia acompanhada de sensibilidade em suas histórias que não tem como não imaginar cada sorriso, melodia, canto e poesia encontrados no rosto e no coração das pessoas envolvidas.
    Adorei! Parabéns!

    Beijão!

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    1. Eliana,

      você leu bem as entrelinhas e o momento da escrita. Estava há muito tempo querendo escrever essas histórias e a senha foi aquele ônibus com a música alta.

      Sabia que iria gostar, por isso enviei o link.

      Obrigado pela presença!

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  4. Massa brother,muito bom o texto, ainda mais por que tive uma participação no último fato,vlw!!!

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    1. Valeu, Luiz!

      Grande presença no meu blog!

      Cara, tenho um imenso respeito por ti, por tudo que me possibilitou vivenciar a partir da música. Serás meu eterno parceiro musical. Meu amigo, meu irmão!

      Que bom que gostou!

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  5. Muitas coisas familiares, Assis!

    Minhas vivências nos ônibus do Rio se assemelham às suas. A sua crônica está perfeita. Os meninos da Mangueira é de emocionar! A citação do nosso saudoso acampamento de Itatiaia e a cantoria boa no ônibus...

    Esse é o Rio que vivenciei, com suas surpresas agradáveis, na década de 80. Enfim, grato pela viagem!!

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    1. Que bom que gostou, Abel.

      Curioso como em alguns momentos as lembranças nos chegam com tal força que somos levados a compartilhá-las com os amigos. E quando somos personagens de algumas delas, então, é só alegria relembrá-las. Isso é memória afetiva!

      Abraço

      P.S. Os dois "branquelos" somos nós dois, lembra?

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  6. Assis, que delícia de texto!
    Nunca fiz o trajeto à Mangueira, mas nessas poucas linhas que descreveu a paisagem ouvi também cantar a música em minha cabeça! Não cheguei as lágrimas... talvez quando pegar este ônibus. Gostei muito do texto e de constatar mais uma vez que temos mais em comum neste ver a volta com olhos encantados. Forte abraço meu amigo! Ah! Depois me diga em que ponto deve-se começar a cantar.

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    1. Pedro,

      obrigado pela participação. É sempre prazeroso saber que agradamos com o pouco que contribuímos.

      Não sei se o ônibus ainda carrega o encanto do canto daqueles ou de novos meninos, porém o ponto que me pergunta, este com certeza está dentro de nós. E você deve saber aonde, né?

      Abração.

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  7. Legal Assis, infelizmente eu nunca encontrei esse grupo na Mangueira.
    Você não quis descer com eles??.
    O Ser Humano tem essa capacidade de surpreender e ser surpreendido, de emocionar e se emocionar.
    Engraçado, eu gostei muito do texto a medida que lia, mas não sei explicar, quando acabei de ler, tive a impressão que ele tratava dos meninos da mangueira o tempo todo.
    Fiquei na dúvida, voltei ao texto para conferir, e verifiquei que ele também falava de outras coisas, e me surpreendi com o fato de que apesar de ter gostado durante a leitura, não lembrava deles ao final.
    Acho que o caso dos meninos cantando o samba foi tão marcante que acabou “roubando a cena”.
    Gostei muito do texto, mas essa parte dos meninos realmente foi muito viva.
    Consegui escutá-los através do texto.
    Parabéns!
    David Oliveira

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  8. David,

    alguns amigos que leram esse texto destacaram essa mesma parte. Eu mesmo acho a melhor das histórias. Quando escrevi, pensei em deixar por último. Porém, como o último caso eu participo junto à galera (que você sabe bem quem), resolvi deixar por último.

    Modéstia à parte, acho que consegui, de algum modo, passar a ideia do que eu senti naquele momento. Por isso, acho que agrada tanto. Foi, realmente, muito emocionante perceber naqueles jovens, através da música cantada, o senso de pertencimento e orgulho pelo Morro!

    Obrigado pelas palavras!

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  9. Olá, Assis!
    Mais um texto delicioso com o qual você brinda seus leitores, fãs e amigos.
    A cada dia que passa, à medida em que vou te lendo e te ouvindo, aumenta minha admiração e, por que não dizer, a identificação que tenho com o amigo.
    Também tenho por hábito registrar, ainda que timidamente, minhas impressões acerca de cenas prosaicas do cotidiano, as quais, se buriladas com esmero, com você o faz, vem a ser tornar infinitamente poéticas.
    Todas as cenas descritas são exemplos disso: penso que o poeta do "busão lotado" queria ser ouvido, imagino mais ainda que vender seus escritos (a gente sente isto quando vê uma curtida no facebook, não é verdade? Não há dinheiro que pague) e você ouviu e comprou; os meninos da mangueira realmente são de emocionar e o relato da torcida sua para que desse o tempo exato para o desfecho da canção naquele determinado ponto da via descreve muitas coisas que eu associo e torço no dia-a-dia (no meu caso, beira um TOC rs); e, por fim, os jovens violeiros "se sentindo" na condução. Essa, meu irmão, eu vivi tanto que me vi como o terceiro branquelo do grupo.
    Meu respeito , querido.
    Rogério

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    1. Caro amigo Rogerio,

      seu comentário especialíssimo justifica a razão de eu escrever. Obrigado pelas palavras queridas.

      Abração

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